olhares re_versos

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Azul

Bosco Sobreira

Desaprendi
o ofício de viver
quando o bolor das horas
foi tingindo de sépia
o mundo que cabe
no meu olho direito

Com o esquerdo
(a)guardo auroras azuis

*

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

vício I

líria porto


na taça o vinho
sorria para a boca

e a louca sorvia
sua língua solta

*

vício II

líria porto


saía-lhe fumaça pelas narinas
e as pupilas aprendiam
que a vida é nicotina

*

Ali

paulo leminski


ali

ali
se

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece

*

Acordei bemol

paulo leminski

acordei bemol
tudo estava sustenido
sol fazia só
não fazia sentido

*

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

RAIZ

Raiça Bomfim

Na casa de vô Messias,
nada faltava nem findava.
Quando o fogo miava,
ele exclamava,
“oh o começo do escuro”.
Carecendo de água extinta,
ele dizia,
“a sede tá com sobra”.
Se perdia uma lembrança,
“tô sentindo esquecimento”.
Vô Messias era um magro
forte e sorridente.
Viveu para sempre
reciclando excessos
e se encantando de começos.

*

MISCIGENAÇÃO

Silvana Guimarães


Um bisavô
tinha parte
com o vento.
Durou pouco,
não chegou
aos quarenta.
A bisavó
era de pés
tão fincados
na terra,
que viveu cem.
Um outro
juntou ouro,
fama, poder.
A outra,
por pouco,
quase põe
tudo a perder.
Uma avó,
resignada,
fez filhos
e rezas.
A outra,
decidida,
filhos e
revolução.
Um avô
era poeta.
O outro
era padeiro.
O que no fim
dá no mesmo:
tudo pão.

*

Soirée

Greta Benitez

Um vestido feito de teias de aranha
pedras de calçada nos anéis
perfume de água do mar
e uma mosca no decote prestes a voar
flores murchas pra enfeitar o cabelo.
Quem se atreve a dizer que isso não é belo?

*

minguante

líria porto


lua
o rato roeu
tua cara de queijo

dali vazou leite
que gato lambeu
com seu olho verde

cão pobre vadio
uivou no vazio
terrena tristeza

a vida é o quê
senão o aguardo
do fim

*

matinal

mariana botelho


mapear os trigais da
pele

saber-lhe o cheiro
de terra o intenso
sabor de
chuva

colher com discreta
violência o primeiro
silêncio do
dia

*

Inconcordante

Roberta Silva


Meus olhos chorou.
Neles lágrimas para um só.
Alma plural, verbo singular.
O outro jaz.
Perdão, foi o melhor que pude.
A dor cavou
mas não encheu o açude.

*

uma bravura regenera a noite

romério rômulo


de quantas nuvens se faz uma loucura?
é construída a mão que bate o prego?
as estações do corpo só revelam
o hábito eloqüente do delírio.
que nos corroa a pedra, o visgo louco
da agonia!
desmonte do tamanho, o extirpado dente,
gengiva em sangue são a mesma face
do hábito terrível de ser homem.
quanta eloqüência travada no meu olho!

*

quase um tango

adriana coelho


que coisa mais latina
me chegar assim com tangos
com esse orange walking
com pratas e besos roubados
e com esse ar borgeano

que coisa mais ladina
esse teu olhar bajamar
que saca la paz dos meus dias
y me quita la noche y el sueño
quando me ofereces coca
e bebes um vinho chileno

que coisa mais romântica
quando me atacas na cama
antes fria e deserta
e me declamas um pablo
só para ter-me caliente
[sale un aroma de jazmín mojado
por el sudor, un ácido relente]

y yo pronuncio tu nombre
entre embargos y cochabamba
si no eres fidel yo te castro
encuanto enciendes um charuto
de havana

*

a mondrian, sem lhe dizer, palavra

romério rômulo


quente frio, em pele.

– nus da manhã
– nus de qualquer aragem
– nus de todo apodo

jazem sobre o quadrado,
osso de todo o rosto.

sobrados são
– mondrian –
calças, meias, aragens.

o pêlo puro, resto essencial,
é a fala.

*

fio

líria porto


rio sobre a ponte
rio sobe a ponte
rio sob a ponte
rio só


ponte
um ponto sem nós

*

Shlept

Mercedes Lorenzo

a língua bifurcada da serpente
prova dois gostos?
o que acontece
se eu lamber teu gesto?
gosto do susto
de pensar palavras salivas
incisivas in.surgentes
carnívoras

isso vai me inflorescendo
o resto

*

Casamento

Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

*

Parâmetro

Adélia Prado


Deus é mais belo que eu.

E não é jovem.

Isto sim, é consolo.

*

juventude

líria porto

narciso mergulha n’umbigo
e insiste:

espelho espelho deus
existe alguém no mundo?

*

amélia

líria porto

ficava lá disponível
limpa macia perfumada
igual blusa no cabide

quando ele vinha usava-a
voltava-se para a parede
dormia
partia pela manhã

foi visto no shopping
de roupa nova

*

angu de caroço

adelaide do julinho

comi a sua carne
: vou ter de roer
o moço

*

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