espiatório

olhares re_versos

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

pendências

líria porto


gostar de mim até gosto

mas não sou apaixonada

na verdade eu nem aceito

a minha impaciência

ser tão indisciplinada

porém faço vista grossa 

passo pano justifico-me

e se alguém me enche o saco 

solto os cachorros


não sirvo para casar

sou no entanto 

                       minha amiga


*


quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

punhalada

 líria porto


risinhos da minha aldeia

a ironia o conismo

maledicências traduzem

a sordidez dessa gente

:

a hipocrisia


*

quarta-feira, 7 de julho de 2021

pandemônio

líria porto

tal como um camelo mastiga o deserto
passo o tempo a ruminar as horas
sem saber ao certo o dia da semana
se é começo ou fim
de mês
acordo no meio da noite
amanheço sonolenta
sumiram-me os sonhos
não há domingos
doem-me as corcovas
:
os pesadelos permanecem

*

quarta-feira, 7 de abril de 2021

métrica

líria porto

o verso não me obedece
espicha encurta
encolhe
conforme lhe dê na telha

*



segunda-feira, 30 de novembro de 2020

recuperação

líria porto

depois de uma derrota
é muito mais difícil
sentirmo-nos à altura
de quem um dia fomos
daquilo que fizemos

tornamo-nos inseguros
trêmulos claudicantes
e só a duras penas
olhamo-nos ao espelho
e nos encaramos

o processo é lento


segunda-feira, 21 de outubro de 2019

sedução

líria porto

aliciador é pedilã
chega de manso
:
diabo disfarçado
de anjo

*

quarta-feira, 15 de março de 2017

o feto

líria porto

espectro de extra-terrestre
que se reveste de gente

*

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

caminho da roça

líria porto

da praça sete à casa
subia a avenida afonso pena
virava à esquerda na getúlio vargas
chegava à contorno com rua do ouro
e ali mesmo subia a pouso alto
até a salutares

porém se tinha pressa
pela altura da praça tiradentes
pegava o atalho da aimorés
em direção à serra

(abraçava-a ofegante e um tanto cansado
aquele amante)

*

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Poema das Sete Faces

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

*

existência

líria porto

viver é poema épico
(tem horas muito solenes até parece soneto)
porém morrer é haicai

*

domingo, 26 de outubro de 2014

chove

líria porto

o broto na terra
a serra a neblina
o verde nos olhos
o rio a enxurrada
a gota que cai
as penas o pássaro
o ninho que encharca
a vidraça que chora
o canteiro de alface
roupas no varal
:
tudo me comove

*

quinta-feira, 25 de março de 2010

ana c me olha do alto

líria porto

"abri curiosa o céu"
"uma lâmpada queimada me contempla"

"muda feito uma coisa última"
"demito o verso como quem acena"

"é outra
a dor que dói"

*

(os versos acima são fragmentos de poemas variados de ana cristina cesar)

*

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Azul

Bosco Sobreira

Desaprendi
o ofício de viver
quando o bolor das horas
foi tingindo de sépia
o mundo que cabe
no meu olho direito

Com o esquerdo
(a)guardo auroras azuis

*

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

vício I

líria porto


na taça o vinho
sorria para a boca

e a louca sorvia
sua língua solta

*

vício II

líria porto


saía-lhe fumaça pelas narinas
e as pupilas aprendiam
que a vida é nicotina

*

Ali

paulo leminski


ali

ali
se

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece

*

Acordei bemol

paulo leminski

acordei bemol
tudo estava sustenido
sol fazia só
não fazia sentido

*

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

RAIZ

Raiça Bomfim

Na casa de vô Messias,
nada faltava nem findava.
Quando o fogo miava,
ele exclamava,
“oh o começo do escuro”.
Carecendo de água extinta,
ele dizia,
“a sede tá com sobra”.
Se perdia uma lembrança,
“tô sentindo esquecimento”.
Vô Messias era um magro
forte e sorridente.
Viveu para sempre
reciclando excessos
e se encantando de começos.

*

MISCIGENAÇÃO

Silvana Guimarães


Um bisavô
tinha parte
com o vento.
Durou pouco,
não chegou
aos quarenta.
A bisavó
era de pés
tão fincados
na terra,
que viveu cem.
Um outro
juntou ouro,
fama, poder.
A outra,
por pouco,
quase põe
tudo a perder.
Uma avó,
resignada,
fez filhos
e rezas.
A outra,
decidida,
filhos e
revolução.
Um avô
era poeta.
O outro
era padeiro.
O que no fim
dá no mesmo:
tudo pão.

*

Soirée

Greta Benitez

Um vestido feito de teias de aranha
pedras de calçada nos anéis
perfume de água do mar
e uma mosca no decote prestes a voar
flores murchas pra enfeitar o cabelo.
Quem se atreve a dizer que isso não é belo?

*

minguante

líria porto


lua
o rato roeu
tua cara de queijo

dali vazou leite
que gato lambeu
com seu olho verde

cão pobre vadio
uivou no vazio
terrena tristeza

a vida é o quê
senão o aguardo
do fim

*

matinal

mariana botelho


mapear os trigais da
pele

saber-lhe o cheiro
de terra o intenso
sabor de
chuva

colher com discreta
violência o primeiro
silêncio do
dia

*

Inconcordante

Roberta Silva


Meus olhos chorou.
Neles lágrimas para um só.
Alma plural, verbo singular.
O outro jaz.
Perdão, foi o melhor que pude.
A dor cavou
mas não encheu o açude.

*

uma bravura regenera a noite

romério rômulo


de quantas nuvens se faz uma loucura?
é construída a mão que bate o prego?
as estações do corpo só revelam
o hábito eloqüente do delírio.
que nos corroa a pedra, o visgo louco
da agonia!
desmonte do tamanho, o extirpado dente,
gengiva em sangue são a mesma face
do hábito terrível de ser homem.
quanta eloqüência travada no meu olho!

*

quase um tango

adriana coelho


que coisa mais latina
me chegar assim com tangos
com esse orange walking
com pratas e besos roubados
e com esse ar borgeano

que coisa mais ladina
esse teu olhar bajamar
que saca la paz dos meus dias
y me quita la noche y el sueño
quando me ofereces coca
e bebes um vinho chileno

que coisa mais romântica
quando me atacas na cama
antes fria e deserta
e me declamas um pablo
só para ter-me caliente
[sale un aroma de jazmín mojado
por el sudor, un ácido relente]

y yo pronuncio tu nombre
entre embargos y cochabamba
si no eres fidel yo te castro
encuanto enciendes um charuto
de havana

*

a mondrian, sem lhe dizer, palavra

romério rômulo


quente frio, em pele.

– nus da manhã
– nus de qualquer aragem
– nus de todo apodo

jazem sobre o quadrado,
osso de todo o rosto.

sobrados são
– mondrian –
calças, meias, aragens.

o pêlo puro, resto essencial,
é a fala.

*

fio

líria porto


rio sobre a ponte
rio sobe a ponte
rio sob a ponte
rio só


ponte
um ponto sem nós

*

Shlept

Mercedes Lorenzo

a língua bifurcada da serpente
prova dois gostos?
o que acontece
se eu lamber teu gesto?
gosto do susto
de pensar palavras salivas
incisivas in.surgentes
carnívoras

isso vai me inflorescendo
o resto

*

Casamento

Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

*

Parâmetro

Adélia Prado


Deus é mais belo que eu.

E não é jovem.

Isto sim, é consolo.

*

juventude

líria porto

narciso mergulha n’umbigo
e insiste:

espelho espelho deus
existe alguém no mundo?

*

amélia

líria porto

ficava lá disponível
limpa macia perfumada
igual blusa no cabide

quando ele vinha usava-a
voltava-se para a parede
dormia
partia pela manhã

foi visto no shopping
de roupa nova

*

angu de caroço

adelaide do julinho

comi a sua carne
: vou ter de roer
o moço

*

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